quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Jediel Gonçalves - Resenha Crítica de Flavio Viegas Amoreira





Decifrações na Mesa de um Bar


Um lugar chamado “percepção”. Além de responder a uma pressão psíquica, esta percepção está justamente articulada ao impulso na direção da escritura, ao desejo (sob forma de espera) de escrever. O enredo não pode começar simplesmente de “atrás dos montes”, de uma mesmice poética, sem novidade alguma, de um romantismo pastoral, mas deve prover uma solução particular para a divisão subjetiva do narrador. Para isso, a literatura é chamada a reconciliar o corpo de gozo (“suporte literário”, scriptor, inscrito no prazer e escrevente), torturado pelo motivo da espera, e o sujeito que está exilado em si mesmo na mesa de um bar.

Corpo e pulsão. O desejo de escrever, ou gozo da escrita, é recuperado pela via pulsional. A “literatura” aparece no conto de Flávio Viegas Amoreira não somente como um meio de viver, mas como parte complexa da vida: a espera (espera-se o quê?).

Literatura, ou poder criativo, como espera. Para que no narrador consiga satisfazer o gozo da escrita, é preciso continuar a escrever diariamente.

A prática dessa escritura mitiga a violência de tensões internas do narrador. De qualquer forma, a escrita guarda em si o movimento latente do sujeito: existe um impulso para a escrita que reconcilia o sujeito com ele mesmo, no sentido de que ela provê, sob forma de expressão, uma solução particular para sua divisão. E por isso esse sujeito pede por âncoras. Não é um desejo sublimado que o sujeito aqui tenta procurar, mas um desejo de escrever alguma coisa, de substituir a parte insignificante do episódio amoroso para abraçar os cadernos de rascunhos. Sem querer, o narrador substitui a complexidade da vida pela precipitação do desejo literário. Esforça-se em direção à escritura pelas representações (pulsionais) sensoriais. A megalópole, mega imagem sensorial, entra no fazer poético como material coletado, e iconiza-se como tal. Os movimentos da cidade se sobrepõem uns aos outros, até atingir uma forma mais ou menos hieroglífica. Imagem mental se transforma em imagem escrita; matéria precipitada pela pulsão se converte em scripture. O narrador adentra o universo da criação artística, libera, ex-ternaliza todo o traumatismo, passando de uma posição passiva (pois transcreve o enigma das imagens da cidade em produto da criação) a uma posição ativa, a do sonhador que “alucina”, escrevendo, fora daquilo de que ele quase foi o objeto alucinado. Uma vez traçados no papel, esses sonhos, essas “alucinações”, não são estáticos, ganham vida. O narrador se põe a escrever uma história que não se reproduz no conto que o leitor de Amoreira está lendo. Mas o mais importante no conto não é nos dar esse acesso à estória escrita pelo narrador, mas buscar restaurar as faltas de sua própria vida com a literatura. Na verdade, aqui, se coloca uma história que repete algo da pulsão de escrever, que – buscando reconciliar o sujeito com as privações de sua existência amorosa (eró-tica, no sentido menos sexual da palavra, de alguém que goza de experiência amorosa) – coloca o sujeito antes do objeto. Ou seja, muito antes de escrever, o sujeito deseja saber porque espera. A espera é uma forma preparativa para algo que será escrito a partir desse desejo. E isto vale para os mitos, as ficções, as teorias, a poesia. De qualquer forma, o narrador goza dessa espera. A espera deixa de ser elemento problemático para tornar-se elemento de eficácia e efeitos. Quando o narrador se concentra no fato de esperar, todos os motivos vêm desencadeados nos mesmos planos. Há um “enchimento” na espera, e um esvaziamento na literatura. E é esse esvaziamento, “néantissement”, segundo Sartre, que nos interessa. O néant criador. E essa literatura não tem por fim achar, mas testemunhar que insatisfeitamente ela é buscada. A escrita parece caminhar pelo labirinto das suas próprias galerias: um pouco trechos de textos que geram ainda mais textos. A literatura constitui o ponto de partida para uma reflexão. Quem esperava não chegou, quem chegou, mesmo, foi a literatura, a criação poética, criando uma arte de ser dentro de uma arte de parecer. Não são ilusionismos, mas sim, fascinação pela palavra, pela escrita. Uma passagem da espera virtual para um apego à palavra. No conto há também um encontro desse narrador com o Tempo. Que Tempo é esse? Não é o tempo perdido que passou a esperar pelo amante; é o tempo ganho que faz multiplicar o sinal de dois pontos (:) no texto. Escreve. É o tempo entre a escuta do mundo e a transferência para a escrita. Tempo de escuta-escrita. O tempo que vai ajudar o narrador a terminar sua frase. Uma frase-viagem. Tão longa na decifração! É o tempo para compreender. Tempo da coisa e do vestígio. O narrador não perde somente a pessoa que não veio ao encontro. Ele perde o real. No conto, notamos que o real é visto como o impossível, aquilo que é radicalmente perdido, excluído do simbólico. A literatura exige deste narrador uma simbolização para tornar-se categoria do possível. Escrevendo, esse narrador maneja o real como “o expulso do sentido, o impossível como tal” (1), segundo Jacques Lacan. O narrador mergulha no real da literatura, no real que não é o mundo e não há a menor esperança de alcançá-lo. Real que escreve o que é estritamente impensável. Um real onde tudo resta findo. Um real, oco, de poesia, talvez. Há um recolhimento do sujeito, uma rejeição do mundo externo. Espécie de entrega a um mar silencioso que pode, em muitos casos, ser um requisito do pensamento e da imaginação scriptural. Tomar a criação poética, à pílulas, durante o momento de espera. A “espera” seria assim um símile para provocar a arte literária. Ela assinala um procedimento interessante: ela evoca um ato de se voltar para si mesma (espera-se um, mas chega o outro), e serve-se de uma expressão que a imagem de “literatura” autoriza para fortalecer a própria engrenagem poética. Medita-se, inquire-se, sonda-se, envolvendo o leitor num exercício de lúcida reflexão que revela uma forte consciência dos mecanismos implicados nos processos de significação. A espera é uma vigília. Há um magma em expansão que é sustentado na dupla “literatura e espera”. Parece haver um móbil a arrancar do corpo a fala, um estado de inércia em busca do inalcançável. Os impulsos são ascendentes, mas não são impulsos para um absoluto, é um impulso para a multiplicidade de vozes, para uma extensão reflexa para o olhar daquele que espera interroga (por que ele não vem?). Há um horizonte insatisfeito. Escreve-se para esquecer que escreve num exercício circular?
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(1) LACAN, Jacques. Seminário R.S.I (inédito). Lição de 11 de março de 1975.p.32.
BIBLIOGRAFIA:
Céline MASSON, L’Angoisse et la matière, Paris, L’Harmattan, 2001.
Éric BENOIT. Néant Sonore, Mallarmé ou la traversée des paradoxes, Bordeaux, Droz, 2007.
Hanna ARENDT ; Hermman Broch, Création Littéraire et Connaissance, Paris, Gallimard, 1985.
Jacques LACAN. Seminário R.S.I (inédito). Lição de 11 de março de 1975.
Joël CLERGET, La pulsion et ses tours, la voix, le sein, les fèces, le regard, Lyon, PUL, 2000
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Jediel Gonçalves é formado em Letras Modernas pela Universidade de São Paulo; mestre em Literatura Francesa pela Université de Provence Aix-Marseille I, é membro do Laboratório de Estudos Intersemióticos; Pesquisador em literatura francesa dos séculos XIX e XX; crítico literário; pesquisador das relações e implicações/traduções das artes plásticas no universo da criação literária. Atualmente realiza um estudo intersemiótico sobre a recepção de obras plásticas na obra literária do escritor francês Marcel Proust.
Blog: http://litterartmobilis.blogspot.com E-mail: prof_jediel@yahoo.fr

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

BELADONA E SEUS VÁRIOS MARIDOS, Conto Premiado de Silas Correa Leite




Exercícios Urbanos
Portal Literal 1.0, Rio de Janeiro (RJ) • Fundação Petrobrás

O vencedor do concurso Exercícios Urbanos do mês foi Silas Correa Leite, com "Beladona e seus vários maridos". Ele ganhará um vale-livros de R$ 300 da Livraria Cultura. Veja também os outros classificados. Curadora: Heloisa Buarque de Hollanda
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Beladona e seus vários maridos
Silas Correa Leite


Beladona, ou melhor, a Professora de Ciência, Biologia e Matemática, Benedita Izidrom Castaquali, vulgo Beladona, tinha certamente a fórmula perfeita e muito bem acabada do Verbo AMAR em todos os seus sentidos, até explícitos. Inicialmente cinco era a quantidade exata de sua felicidade plena. A ciência da multiplicação de desejos. A matemática da soma de tanta libido. A biologia da zona de fricção. Casou cedo com um tipinho, por paixão louca, amor a primeira vista e o pai portuga cobrando em cima da barriga de quatro meses, depois amor à prestação, depois tédio conjugal, duplicata vencida do desejo, não satisfeita, claro, deu um pé no traseiro do sujeitinho mais folgado do que a Ângela Ro Ro de cueca, e partiu pro trabalho constante e para o estudo direto e multiplicador de posses e afins. Era mulher de verdade mas não era Amélia, claro.

Anos depois, apagado o pito, sossegado o facho, o segundo marido-homem que lhe deu então, três filhas, Judite Flor, Esther Leão e Nara Estrela. Malemal as meninas fizeram o primário, ela largou o fofo que tinha alguma bufunfa (e valera-se disso) e viveu-se livre, leve e solta. Free Again, dizia. Numa vigem de férias para o litoral norte de São Paulo, festeira que era, toda trancham decolou o terceiro marido vítima. Lá foi morar junto, tentar ser feliz, custasse o que custasse, doesse o que doesse. E pra ela ser feliz era a paixão aloucada, que, por algum motivo, desgaste ou enjôo, não durava muitas luas. Imagine só.

As filhas moças, e a Beladona resolveu comer marmita fora. Terceirizar, por assim dizer. Partiu literalmente para o quarto concubinato-entrave. Traía-se consigo mesma às vezes. Era do feitio amoroso dela. E ali se apoquentou um pouco, achando que, quem comia o filé, haveria de querer comer também o osso. Já pensou, num país latino de histórica machice adquirida? Mas, claro, poderosa, liberal, signo de escorpião em tudo, a Beladona não quis alguém pra envelhecer ao seu lado. Queria jovens na muda. Literalmente deu com os burros nágua. Onde já se viu isso?

O maridinho janota e boçal, gaúcho saradinho da silva, tava com olho torto pro lado de uma outra, dando em cima e embaixo de uma ruiva vizinha pedaçuda, que se aproveitou em desfrute no côncavo e convexo da íntima zona de fricção. E pôs-se chapéu de vaca, com a Beladona ardente ficando fula da vida ao saber do porqueira em tapeação. Benza-Deus. Então a Beladona se aborreceu, correu fazer curso de esoterismo, leu Neruda, ouviu Cauby Peixoto, Pixinguinha, deu-se um tempo que tinha que aprender alguma lição com as cacetadas do verbo existir também. Beladona deu-se um desencargo de consciência, segurou muito bem o tchan, por assim dizer. Mas a vida é madrasta e Deus é pai. E a Beladona na vacância de uma paquera e algumas ficanças...se encafifou, onde já se viu, com um colega de trabalho na escola, professor de sua área. Só por Deus.

Quando se viu, estava multiplicando sonhos e explicitudes gozosas de prazeres e felicidade por atacado. Era o outro marido-vítima da Beladona. Como tudo, em tese, tem começo, meio e fim, a dádiva paixão também por mais pegajenta ou viajosa que seja, o professor foi para outra escola e, tiau. A Beladona azedou a polenta da vida, e, um dia, fui, deu um chega pra lá no frouxo do maridinho-mané, e, novamente, claro, deu Beladona nas pensões alimentícias – ganhava mais do que os machões varões - uma delas para o pai das herdeiras chiques e embonitadas.

Conversa vai, conversa vem, um dia a bendita Beladona estava com olhares maviosos e surgiu com cantada doce de aprendências em labutas. Beladona começou a sondar calendários, renúncias e pertencimentos. Foi nessa. Isso na segunda-feira. Depois, na terça-feira da semana, estranha coincidência, a Beladona com sininhos no coração. Pior foi na quarta-feira, dia de batente, e lá surgiu a Beladona parecendo uma penteadeira sonora de cigana. Ali teria os ex-patos-vítimas? Que nada. Na quinta-feira a Beladona lá estava pendurada em lustre, sem ter lustre. Será o impossível? Desconfiei, encafifado.

Pois não é que, na sexta-feira boêmia depois do dia de gandaia, a Beladona tava, de namorico, assanhada pro forfé? Onde há balaio há tampa, diz o ditado arigó. A Beladona tava jogando em todas as posições de ataque no time do amor? Mala e cuia. Estava saindo com os seis ex e alguns possíveis retornos de quase futuros. Cruzava, cabeceava pro gol e ainda defendia. Já pensou? Ai do amor! Pior: se descansava um sábado, falhava a encomenda de um contato, o ex era convertido crente sabatista de ocasião ou tava de pilequinho-ressaca brava, ela ainda dava uma paquerada por atacado, fogo na canjica das emoções atiçadas. Hormônio? Antes fosse. Antes fosse. Ninguém merece. Domingo ainda ia à feira do bairro sondar um português cheio de gíria, sotaque graúdo e sortido, e com um sapato 48 de tamanho maroto. Não estava encalhada e nem carecida mas, ia com a corda toda, em franca atitude de seduzir e de, nos seixos íntimos dar uma calibrada e pra isso tentando um novo serviço corpóreo de lubrificação corpo a corpo.

Depois, saquei o jogo dela: ela abria-se em leque do maquiavelismo interior, gostava do ex, da segunda-feira, seu primeiro amante, que a tinha inaugurado por dizer assim, um homem que a marcara bem, um cearense de olho azul meio brucutu, espingarda de grosso calibre, ainda que algo zarolho e desengonçado, para explicitar o mimo do vareio de amor. Era o número um na sua cotação marital. Mas fora isso o tipo musculoso era lerdo de raciocínio, néscio por demais, porqueira mesmo. Amontoado em casa, sem cair no batente, dar no couro financeiramente, prover o entojo do lar. Era só primeiro e referencial e pronto. Vá nessa.

O da terça-feira, dizia, era um japonês babaquara mas cheio da grana, o lazarento, filhinho de papai, olho de jabuticaba e cheirando a ouro e cocaína. Dose dupla. Era cotação três na sua pirâmide do amor. Tinha lá seu lado doador, sua ternura explícita, sua marca humanista de dar presentes e alegrar ambientes, e lhe dera carinhoso, mimos, balas importadas e muito amor ao estilo bem oriental.

O da quarta-feira era um safado de primeira. Cusarruim do dianho. Tarado, pervertido por assim dizer, e, pior: amante "caliente", babão, de deixar poesia no criado-mudo, fazer serenatas, improvisar guarânia brega no violão encardido. Declamava Vinicius de Moraes que até o poema parecia delezinho mesmo. Cantava Roberto Carlos melhor do que o Roberto Carlos. Tinha mais voz, tinha peito. As quartas eram nobres, portanto.

O da quinta-feira era um caipora de uma figa, um estrupício de marca maior. Bandido, mas ainda assim porqueira carente, ladrão em jogos de baralhos de clandestinos cassinos improvisados onde montava arapucas para pegar peixe grande. Lidava com traficantes, era amigo de antros de escorpiões de máfias e quadrilhas de contrabandistas informais que posavam de novos ricos neoliberais e traçavam engodos na globalização, até nas privatarias, as tais privatizações-roubos. Levava uma vida peregrina, caçando golpes para se enricar, só faltava mesmo ser das torcidas Mancha Verde ou da Independente Gay, melão em fio de navalha.

Só que o show da vida nas relações amorosas tem que continuar. No sábado de manhã quando algum dos agendados ex falhava, faltava com a palavra ou dava no pira pra uma pescaria ou biscate nova com seio de manga-sapatinho, a Beladona sentia a carruagem de abóbora na alma e pegava desconfio, baixa estima. Mas ainda era o que era, era a Beladona poderosa, o verbo amar era especial pra ela, razão de ser e de viver, não trocava nenhum dos seus tantos por qualquer Brad Pitt da vida ou muito menos Leonardo de Caprio. Onde já se viu?

O da sexta-feira era mais feio do que filhote de cruz-credo atrás de calipial, o último na escala da relação causa e efeito, o que até poderia ser descartável, mas a Beladona o adorava físico e espiritualmente pra custeio e refinamento. Era o seu bibebô sexual, seu inocente, puro e burro, o seu anãozinho de jardim, viçando assim ao seu lado maternal todo freudiano que muito a excitava sexualmente. Vá saber a loucura dos manejos assim.

Repito: no sábado a Beladona punha roupa no varal, a perereca na janela (lavou tá novo), e os abusados, claro, punham, depois dos usufrutos dos desfrutes a bengala pra descansar. Brinquei com ela, que ela deveria por a verdadeira jóia corpórea numa jaula para respirar ar puro e florais de ventos que solam Bach.

Mas a danada confirmou:

– No domingo ainda saio com o Joaquim Madeira, aquele dono de três barracas de pastel na feira. O homem não é fácil. Gamou e eu estou no desfrute.

O danado vai botar palmito na azeitona dela. Panela acesa é que faz freguesia boa?

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