terça-feira, 29 de março de 2011

A ALMA DE TOLSTOI, Poema de Silas Correa Leite





A Alma de Tolstói

Muito além das montanhas da Rússia
A alma de Tolstói ainda viaja
E se alimenta das impropriedades insanas dos seres
Perdidos como ilhas de nódoas entre tapumes falsos.
A alma de Tolstoi tenta compreender o incompreensível
E quer salvar todos os seres
E alguns pobres seres que são reses entre estátuas e cofres
E ele muito se admira de se perder de si sonhando improbabilidades que não aceita no humanus.

Muito além das montanhas da Rússia
O espectro de Tolstói ainda vaga
Tentando reconstruir a sua terra além da bruma
Que o terrifica no íntimo insarado de pensador.
Porque a alma de Tolstoi é a própria Rússia ferida aberta
E ele procura píer, estação de trem, portos seguros
E alguns outros que lhe vão sendo aberto além
Do que ele de si mesmo deixou como tesouro triste
A vida humana, a besta-fera, o ser desatinado.

Muito além de todos nós que o ainda traduzimos
São tantas as almas penadas que, procuram
Um livro, uma arte, um mudo de regurgitar além do lodo
O que a vida nos dá de horror e neuras e escombros
Como à Leon Tolstoi que escreveu sua guerra sem paz.

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Silas Correa Leite – Poeta, Ficcionista, Ensaísta
Itararé-SP – Prêmio Ligia Fagundes Telles Para Professor Escritor
Autor de CAMPO DE TRIGO COM CORVOS, Contos, Editora Design - E-mail: poesilas@terra.com.br - Blogue: www.portas-lapsos.zip.net

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Juca Peralta, Romance Espetacular de Sergio Mudado




Pequena Resenha Crítica


Um Romance Fora de Série:
“Os Negócios Extraordinários de um Certo Juca Peralta”
Do Literato Sergio Mudado

Que a literatura moderna é perigosa
é algo inconteste. A única resposta
digna da crítica que ela suscita, é que
essa literatura venenosa exige um novo
tipo de leitor: um leitor que ‘responda’

Paul Ricouer, Pensador Francês

-Eu sou macaco de auditório do médico-literato Sergio Mudado, desde que me deliciei com o livraço Vassalu, que tive o prazer de resenhar e que, acho, vertida para o inglês, devidamente encaminhado para um agente literário dos Estados Unidos daria um filme clássico muito melhor do que Tróia e Gladiador, e que, em tese, trata do mesmo tema, época e idade média da história. Estupenda obra prima.
-Por isso, quando recebi “Juca Peralta”, Romance, custei a me preparar para a leitura que teria que ser especial, prazerosa, e que, certamente iria mexer com meus botões sensoriais. Vivendo época pessoal difícil, de amarga caminhadura, finalmente entrei de vereda na leitura que prometia, aqui e ali parando, indo e vindo, até que finalmente tomei pé definitivo e dali em diante, escolado, salve-se-quem-puder, caí no fluxo narrativo e babei. Baba baby, diria a canção. Pois foi por aí...
-A narrativa de Sergio Mudado cativa, seduz, empolga, pega o ledor feroz pela mão, leva-o para passear no parque temático das contações, uma linguagem ao mesmo tempo em que cult e pop, lembrando aqueles historiadores e cronistas mineiros que deitam falatório e seduzem, aplainam, e, levados da breca, fazem o leitor seduzido curtir, gostar, “cerrir” (como se diz lá em Itararé), e outros prosopopéias de mais um clássico da literatura brasileira que o Sergio Mudado é mesmo o numero um atualmente. Só senti o mesmo prazer quando li O Baudolino do Umberto Eco, Sergio Mudado no mesmo patamar, no mesmo nível.
-Contações com esmero, dados filosóficos e místico-conceituais, passando pela história de Minas e suas semeaduras gerais, do Brasil de muito ouro e pouco pão, do mundo que Brecht rotulou como em tempos tenebrosos, como se o autor inventasse uma toda própria memória recorrente de idas e vi(n)das, alguns dados místicos, e, toma-lá-da-cá, o bendito boêmico personagem principal Juca Peralta que pinta e borda alardeios e mesmo insanidades, e bota suspensório em cascavel, aprontando das suas peraltices, entre prazeiranças e contentezas de um livraço. Muito prazer de ler, acreditem. Sergio Mudado narra com uma baita maestria, que dá o que sentir, curtir, florir-se. O próprio pensador francês Paul Ricouer ainda reafirma, a propósito do livro e de seu prumo literário: “Não temos a menor idéia do que seria uma cultura em que não se soubesse mais o que significa ´narrar,”
-Sergio Mudado dá show. Romance pontuado com causos do arco da velha – o escritor um grande mentiroso? – e o leitor entra de mala e cuia e mente lavada, e vai sendo bombardeado pelo implícito, explicito, internarrativas, ora sob um enfoque, ora sobre outro, na garupa do historial o leitor é conduzido e monta a galope o romance-quase-novela todo. Será o impossível? Pois, a acredite, se quiser, o livro de mais de 400 páginas cumpre a missão maravilhosamente, Sergio Mudado no auge, esmerilhando mitos, lendas, fofocas, mentiras e, claro, o conhecido e magnífico fluxo narrativo que é como se o doutor médico, também aí incluído importante (com prisma todo próprio) também uma persona en-passant no livro, e ainda assim por isso mesmo nos trouxesse mentes, corações, sentimentos, perdas e drenos, sob a sua ótica-criação de primeira grandeza, em belos horizontes, trilhas, errações, contrações e bravezas. Bravo.
E em troca de e-mail com o literato Sergio Mudado, dele tirei dados, pondo pimenta-camari na minha leção: “...No Juca Peralta você chegará a um capítulo no qual Juca e Noel Rosa passeiam pela noite da cidade em (1936), e a atmosfera é de pura magia. O livro, admito, não é de leitura fácil e contém alguns segredos que podem ser desvendados ou não. Noge é o inverso de Egon, e é justamente um alter-ego do grande memorialista Pedro Nava (José Egon de Barros). Ele se torna o senhor do tempo podendo ir e vir, passado e futuro. Cleópatra é Ísis, deusa maior do panteão egípcio. O rádio Matador existiu como foi descrito. A Leitora, que acompanha quem narra, também existiu (e existe) de verdade, acompanhou a feitura do romance. Existe assim um espécie de realismo mágico. O livro começa em janeiro de 1939 e termina em setembro quando inicia-se o II conflito mundial. Nele entram, além de Pedro Nava, Guimarães Rosa, Thomas Mann, Joyce, Proust, Kayan e outros. O universo do romance é complexo, mas não indecifrável.... Bem, eu me diverti muito, escrevendo-o. Minha mulher, que não é leitora "profissional" foi colhida pelo livro, o que me tranqüilizou... (...)”
-Wesley Duke Lee disse que "O que realmente me interessa é a qualidade da ilusão." No caso de Sergio Mudado ainda é a qualidade excepcional da imaginação, sentição, “dom de iludir”, cultura histórica, conhecimento dos descaminhos e configurações interioranas da matreira Minas, dando voz a figurinhas carimbadas de sertões, ruas, bares, quintais e zonas das mulheres de difíceis vidas fáceis, altares, quebradas, monturos, escombros e purezas, como no caso do viajante companheiro que é o Fábio, um aprendiz de Juca em mundos e cafundós.
-Entre magias, feitiços, mágicas, zonas de meretrício, cabarés, bares, crônicas, derramas, poemas, muita MPB e Noel Rosa cifrando todo o livro, mais poemas, insinuações paraletrais de quadrinhos, cantilenas, dados folclóricos, mineirices e pujanças, Juca Peralta pelo seu criador Sergio Mudado vai indicando dados dicas de rincões e suas tipicidades, curas, remédios, purgações, bacilos, pachorras, intermediações, matadores de aluguel, bares, comidas e comilanças, mais acidentes de percurso de amor que é cego e carecido, prostitutas, amantes, perigos, acidentes; um mosaico interiorano dessa Minas que muito bem representa a nossa brasilidade mestiça, entre imigrantes, lugares aonde o Judas perdeu o All-star, e vai por aí o bolero, as acontecências, bravatas e impertinências de percurso, feito um bem-bolado daquele que, certamente, é sim um dos maiores escritores atuais de Minas Gerais, um médico romancista. Já pensou?.
-Sobre o maravilhoso livro do cavaleiro medieval de Sergio Mudado eu já tinha escrito (fragmento): “A história é uma pedra na consciência da civilização. Van Tieghem diz que a categoria social e a importância do escritor crescem em forma notória. Deve ser isso. Os privilégios dos caminhos da literatura contra os sandeus do absurdo que ainda impunemente viçam e mandam. Milton Hatoum diz que o escritor passa a vida inteira tentando dizer uma verdade profunda através de uma invenção literária. Sergio Mudado acertou e brilha na sua obra. Aliás, o próprio dia de brilhar (ilha de edição?) vive dentro dele, espelha ele, está no romance dele, Vassalo. Carne e coragem. Idade Média destilada como sangria letral. Por fim, como muito bem observou a amiga Maria Ilsen na apresentação do livro no site da Livraria Cultura, só a consciência da finitude explicaria a busca da continuidade muito além da vida, além dos sentidos. Alguns se tornam vassalos desta busca. Outros, plantam árvores, criam filhos, deixam obras importantes como Vassallu, A Saga de um Cavaleiro Medieval (de Sergio Mudado)”.
-Pois “O Negócios Extraordinários de um Certo Juca Peralta” é desde logo um clássico. Já no prefácio Benedito Nunes diz do realismo grotesco de Juca Peralta, e comenta: “Nas conversas dos personagens(...) intercalam-se o tempo todo versos das modinhas de Noel Rosa, também feito personagem. O próprio romance é um híbrido conjunto fragmentado, que é persegue e perseguido pelo Tempo e suas loucuras. Em contraponto com as peripécias de Juca Peralta, estão as idas e vindas da própria narrativa, que se divide em três partes dentro de um período datado – a partir de janeiro de 1939, ano fatídico, já instalado o Estado Novo por Getulio Vargas. Não esqueçamos (...) que essas idas e vindas é o próprio Tempo em seu fluir invisível, que se elabora como matéria prima da própria narrativa,m o Tempo vertiginoso, que tem medida desigual(...)”
-A Orelha de Juca Peralta já alerta a proposta: “Uma parceria – Semeei-te em mim - diz, quem narra e lê”, selando um pacto entre o leitor/narrador/autor, “perigo, musica e perfume(...) a atmosfera do texto”. E explicita ainda na orelha: “O leitor que ousar acompanhar quem narra, terá, se sobreviver aos perigos que o espreitarão ao longo da jornada, a oportunidade única de sair de si mesmo e contemplar outro universo(...). Sentirá no espírito, ao mergulhar neste mundo fantástico mundo de palavras alinhadas, imenso deleite. E,s e for arguto, poderá reconhecer nesses resquícios de literatura uma declaração de amor a palavras e aos gênios que a transformam: Nava, Rosa, Mann, Proust, Joyce... (...) Romance saboroso, regido pelo antigo deus que, ainda hoje, ilumina a existência dos amantes da arte, dos leitores capazes de ouvir no vento de estrelas a sinfonia cósmica do Senhor do tempo, da Magia e da palavra”
-O vendedor-Inspetor Juca Peralta, caixeiro-viajante, o aspirante a vendedor Fábio, o rádio Matador feito uma metáfora que se comunica, fere, brinca e se expande literalmente, mais expressões, doenças, filosofias, mitologias, fantasmas, tudo impregnando as facetas do livro que são várias, vários prismas, vários espaços cênicos, tudo um verdadeiro vislumbre para quem adora literatura de alta qualidade criadora e narrativa impecável, entre tantos personagens que vão, voltam, somam, dramatizam, ironizam, recheiam o livro, com viagens de trens, estações e paragens, baldeações (inclusive trans-narrativas) citações bíblicas, ou outras em latim, francês, um verdadeiro destrinche das facetas dos personagens, técnicas de narrar e mesmo confeito criacional do autor, fora de série mesmo. Não é qualquer um que pode criar uma obra assim. Não é qualquer dia que uma jóia preciosa assim nos cai na graça ledora impertinente de se deixar encantar. Mil maravilhas.
-Tuberculose, loucuras? Juca Peralta é o “jogo de amarelinhas “(Fidalgas...) de Sergio Mudado? "Cada romance tem de ser um objeto único. O enredo ordena a sua forma. A estrutura do relato segue a intensidade da narração.", diz Juan José Saer. Por fim, falando sério, deixo que o leitor procure o seu exemplar do belo livro, corra atrás, vá ser também Juca e Peralta atrás de seu comboio, lugar-tenente de ilusões, culturas e artes lítero-culturais fantásticas, trem noturno ou não. Porque, de uma forma ou de outra, assim na terra como no céu, loucos ou saradinhos – de perto ninguém é normal, cantou Caetano Veloso – somos todos filhos de estações de trens; afinal, já no passado não cantou o Ministro da Cultura Gilberto Gil, sobre o benfazejo Expresso 2222 da Central do Brasil?

-Sim, há um trem para as estrelas... E em Juca Peralta a vida é um comboio engatando acontenças, e a visão pode ser só um ponto de partida ou de chegada. Deste e de outro mundo.

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Silas Correa Leite - Santa Itararé das Artes/Samparaguai, Fevereiro 2011
Poeta, Ficcionista, Teórico de Educação, Conselheiro em Direitos Humanos, Jornalista Comunitário, Premio Lygia Fagundes Telles Para Professor Escritor
Pós-Graduado em Literatura na Comunicação (ECA/USP)
Autor de Porta-Lapsos, Poemas, e Campo de Trigo Com Corvos, Contos premiados, finalista do Prêmio Telecom, Portugal, à venda no site www.livrariacultura.com.br
E-mail: poesilas@terra.com.br
Blogue premiado do UOL 2009/2010: www.portas-lapsos.zip.net
Site de sua aldeia natal: www.artistasdeitarare.blogspot.com/

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

SORO CASEIRO, Poema de Silas Correa Leite





SORO CASEIRO

Poeta respirando por aparelho
Desconfie e se proteja:

Narguilé com cerveja!
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Silas Correa Leite
Santa Itararé das Artes
E-mail: poesilas@terra.com.br
Blogue: http://artistasdeitarare.blogspot.com/


segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Breve Currículo do Literato Silas Correa Leite





O Autor Silas Correa Leite



O autor, da Estância Boêmia de Itararé, SP, Cidade Poema, é Teórico da Educação, Jornalista Comunitário (ECA-USP) e Conselheiro de Direitos Humanos (SP). Colabora com mais de 500 sites, como Caros Amigos, Observatório de Imprensa, Cronópios, Estadão, Aprendiz, Palanque Marginal, Correio do Brasil, Storm Magazine (Portugal), Convívio, Itália, Poetry Magazine, EUA, Mis Escritos..., P & Y, Argentina. Consta em mais de cem antologias literárias em verso e prosa, no Brasil e no exterior, como Instituto Piaget, Lisboa, Antologia Multilingüe de Letteratura Contemporânea, Trento, Itália, Cristhmas Anthology, Ohio, Estados Unidos. Fez Direito e Geografia, é Pós-graduado em Literatura na Comunicação (USP), Especialista em Educação (Universidade Mackenzie), Coordenador de Pesquisas da FAPESP/USP, com extensão universitária em Direitos Humanos e Democracia. Começou a escrever aos 16 anos, no jornal O Guarani, de Itararé, é autor do Hino ao Itarareense, Relator da Ong Transparência nas Políticas Públicas, acredita num humanismo de resultados, critica o Brasil que só rico parta os ricos, acredita em arte como libertação (Manuel Bandeira), é um Sentidor (para lembrar Clarice Lispector sua escritora predileta), e, feito uma antena da época (Rimbaud) dá testemunho das amarguras de seu tempo, de lucros impunes, riquezas injustas, propriedades roubos, muito ouro e pouco pão, mais um amoral neoliberalismo de privatizações-roubos (privatarias) com o neoescravismo da terceirização.
Blogues do autor: www.portas-lapsos.zip.net
www.campodetrigocomcorvos.zip.net
Site pessoal: www.itarare.com.br/silas.htm
E-mail para contatos
poesilas@terra.com.br



quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Jediel Gonçalves - Resenha Crítica de Flavio Viegas Amoreira





Decifrações na Mesa de um Bar


Um lugar chamado “percepção”. Além de responder a uma pressão psíquica, esta percepção está justamente articulada ao impulso na direção da escritura, ao desejo (sob forma de espera) de escrever. O enredo não pode começar simplesmente de “atrás dos montes”, de uma mesmice poética, sem novidade alguma, de um romantismo pastoral, mas deve prover uma solução particular para a divisão subjetiva do narrador. Para isso, a literatura é chamada a reconciliar o corpo de gozo (“suporte literário”, scriptor, inscrito no prazer e escrevente), torturado pelo motivo da espera, e o sujeito que está exilado em si mesmo na mesa de um bar.

Corpo e pulsão. O desejo de escrever, ou gozo da escrita, é recuperado pela via pulsional. A “literatura” aparece no conto de Flávio Viegas Amoreira não somente como um meio de viver, mas como parte complexa da vida: a espera (espera-se o quê?).

Literatura, ou poder criativo, como espera. Para que no narrador consiga satisfazer o gozo da escrita, é preciso continuar a escrever diariamente.

A prática dessa escritura mitiga a violência de tensões internas do narrador. De qualquer forma, a escrita guarda em si o movimento latente do sujeito: existe um impulso para a escrita que reconcilia o sujeito com ele mesmo, no sentido de que ela provê, sob forma de expressão, uma solução particular para sua divisão. E por isso esse sujeito pede por âncoras. Não é um desejo sublimado que o sujeito aqui tenta procurar, mas um desejo de escrever alguma coisa, de substituir a parte insignificante do episódio amoroso para abraçar os cadernos de rascunhos. Sem querer, o narrador substitui a complexidade da vida pela precipitação do desejo literário. Esforça-se em direção à escritura pelas representações (pulsionais) sensoriais. A megalópole, mega imagem sensorial, entra no fazer poético como material coletado, e iconiza-se como tal. Os movimentos da cidade se sobrepõem uns aos outros, até atingir uma forma mais ou menos hieroglífica. Imagem mental se transforma em imagem escrita; matéria precipitada pela pulsão se converte em scripture. O narrador adentra o universo da criação artística, libera, ex-ternaliza todo o traumatismo, passando de uma posição passiva (pois transcreve o enigma das imagens da cidade em produto da criação) a uma posição ativa, a do sonhador que “alucina”, escrevendo, fora daquilo de que ele quase foi o objeto alucinado. Uma vez traçados no papel, esses sonhos, essas “alucinações”, não são estáticos, ganham vida. O narrador se põe a escrever uma história que não se reproduz no conto que o leitor de Amoreira está lendo. Mas o mais importante no conto não é nos dar esse acesso à estória escrita pelo narrador, mas buscar restaurar as faltas de sua própria vida com a literatura. Na verdade, aqui, se coloca uma história que repete algo da pulsão de escrever, que – buscando reconciliar o sujeito com as privações de sua existência amorosa (eró-tica, no sentido menos sexual da palavra, de alguém que goza de experiência amorosa) – coloca o sujeito antes do objeto. Ou seja, muito antes de escrever, o sujeito deseja saber porque espera. A espera é uma forma preparativa para algo que será escrito a partir desse desejo. E isto vale para os mitos, as ficções, as teorias, a poesia. De qualquer forma, o narrador goza dessa espera. A espera deixa de ser elemento problemático para tornar-se elemento de eficácia e efeitos. Quando o narrador se concentra no fato de esperar, todos os motivos vêm desencadeados nos mesmos planos. Há um “enchimento” na espera, e um esvaziamento na literatura. E é esse esvaziamento, “néantissement”, segundo Sartre, que nos interessa. O néant criador. E essa literatura não tem por fim achar, mas testemunhar que insatisfeitamente ela é buscada. A escrita parece caminhar pelo labirinto das suas próprias galerias: um pouco trechos de textos que geram ainda mais textos. A literatura constitui o ponto de partida para uma reflexão. Quem esperava não chegou, quem chegou, mesmo, foi a literatura, a criação poética, criando uma arte de ser dentro de uma arte de parecer. Não são ilusionismos, mas sim, fascinação pela palavra, pela escrita. Uma passagem da espera virtual para um apego à palavra. No conto há também um encontro desse narrador com o Tempo. Que Tempo é esse? Não é o tempo perdido que passou a esperar pelo amante; é o tempo ganho que faz multiplicar o sinal de dois pontos (:) no texto. Escreve. É o tempo entre a escuta do mundo e a transferência para a escrita. Tempo de escuta-escrita. O tempo que vai ajudar o narrador a terminar sua frase. Uma frase-viagem. Tão longa na decifração! É o tempo para compreender. Tempo da coisa e do vestígio. O narrador não perde somente a pessoa que não veio ao encontro. Ele perde o real. No conto, notamos que o real é visto como o impossível, aquilo que é radicalmente perdido, excluído do simbólico. A literatura exige deste narrador uma simbolização para tornar-se categoria do possível. Escrevendo, esse narrador maneja o real como “o expulso do sentido, o impossível como tal” (1), segundo Jacques Lacan. O narrador mergulha no real da literatura, no real que não é o mundo e não há a menor esperança de alcançá-lo. Real que escreve o que é estritamente impensável. Um real onde tudo resta findo. Um real, oco, de poesia, talvez. Há um recolhimento do sujeito, uma rejeição do mundo externo. Espécie de entrega a um mar silencioso que pode, em muitos casos, ser um requisito do pensamento e da imaginação scriptural. Tomar a criação poética, à pílulas, durante o momento de espera. A “espera” seria assim um símile para provocar a arte literária. Ela assinala um procedimento interessante: ela evoca um ato de se voltar para si mesma (espera-se um, mas chega o outro), e serve-se de uma expressão que a imagem de “literatura” autoriza para fortalecer a própria engrenagem poética. Medita-se, inquire-se, sonda-se, envolvendo o leitor num exercício de lúcida reflexão que revela uma forte consciência dos mecanismos implicados nos processos de significação. A espera é uma vigília. Há um magma em expansão que é sustentado na dupla “literatura e espera”. Parece haver um móbil a arrancar do corpo a fala, um estado de inércia em busca do inalcançável. Os impulsos são ascendentes, mas não são impulsos para um absoluto, é um impulso para a multiplicidade de vozes, para uma extensão reflexa para o olhar daquele que espera interroga (por que ele não vem?). Há um horizonte insatisfeito. Escreve-se para esquecer que escreve num exercício circular?
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(1) LACAN, Jacques. Seminário R.S.I (inédito). Lição de 11 de março de 1975.p.32.
BIBLIOGRAFIA:
Céline MASSON, L’Angoisse et la matière, Paris, L’Harmattan, 2001.
Éric BENOIT. Néant Sonore, Mallarmé ou la traversée des paradoxes, Bordeaux, Droz, 2007.
Hanna ARENDT ; Hermman Broch, Création Littéraire et Connaissance, Paris, Gallimard, 1985.
Jacques LACAN. Seminário R.S.I (inédito). Lição de 11 de março de 1975.
Joël CLERGET, La pulsion et ses tours, la voix, le sein, les fèces, le regard, Lyon, PUL, 2000
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Jediel Gonçalves é formado em Letras Modernas pela Universidade de São Paulo; mestre em Literatura Francesa pela Université de Provence Aix-Marseille I, é membro do Laboratório de Estudos Intersemióticos; Pesquisador em literatura francesa dos séculos XIX e XX; crítico literário; pesquisador das relações e implicações/traduções das artes plásticas no universo da criação literária. Atualmente realiza um estudo intersemiótico sobre a recepção de obras plásticas na obra literária do escritor francês Marcel Proust.
Blog: http://litterartmobilis.blogspot.com E-mail: prof_jediel@yahoo.fr

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

BELADONA E SEUS VÁRIOS MARIDOS, Conto Premiado de Silas Correa Leite




Exercícios Urbanos
Portal Literal 1.0, Rio de Janeiro (RJ) • Fundação Petrobrás

O vencedor do concurso Exercícios Urbanos do mês foi Silas Correa Leite, com "Beladona e seus vários maridos". Ele ganhará um vale-livros de R$ 300 da Livraria Cultura. Veja também os outros classificados. Curadora: Heloisa Buarque de Hollanda
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Beladona e seus vários maridos
Silas Correa Leite


Beladona, ou melhor, a Professora de Ciência, Biologia e Matemática, Benedita Izidrom Castaquali, vulgo Beladona, tinha certamente a fórmula perfeita e muito bem acabada do Verbo AMAR em todos os seus sentidos, até explícitos. Inicialmente cinco era a quantidade exata de sua felicidade plena. A ciência da multiplicação de desejos. A matemática da soma de tanta libido. A biologia da zona de fricção. Casou cedo com um tipinho, por paixão louca, amor a primeira vista e o pai portuga cobrando em cima da barriga de quatro meses, depois amor à prestação, depois tédio conjugal, duplicata vencida do desejo, não satisfeita, claro, deu um pé no traseiro do sujeitinho mais folgado do que a Ângela Ro Ro de cueca, e partiu pro trabalho constante e para o estudo direto e multiplicador de posses e afins. Era mulher de verdade mas não era Amélia, claro.

Anos depois, apagado o pito, sossegado o facho, o segundo marido-homem que lhe deu então, três filhas, Judite Flor, Esther Leão e Nara Estrela. Malemal as meninas fizeram o primário, ela largou o fofo que tinha alguma bufunfa (e valera-se disso) e viveu-se livre, leve e solta. Free Again, dizia. Numa vigem de férias para o litoral norte de São Paulo, festeira que era, toda trancham decolou o terceiro marido vítima. Lá foi morar junto, tentar ser feliz, custasse o que custasse, doesse o que doesse. E pra ela ser feliz era a paixão aloucada, que, por algum motivo, desgaste ou enjôo, não durava muitas luas. Imagine só.

As filhas moças, e a Beladona resolveu comer marmita fora. Terceirizar, por assim dizer. Partiu literalmente para o quarto concubinato-entrave. Traía-se consigo mesma às vezes. Era do feitio amoroso dela. E ali se apoquentou um pouco, achando que, quem comia o filé, haveria de querer comer também o osso. Já pensou, num país latino de histórica machice adquirida? Mas, claro, poderosa, liberal, signo de escorpião em tudo, a Beladona não quis alguém pra envelhecer ao seu lado. Queria jovens na muda. Literalmente deu com os burros nágua. Onde já se viu isso?

O maridinho janota e boçal, gaúcho saradinho da silva, tava com olho torto pro lado de uma outra, dando em cima e embaixo de uma ruiva vizinha pedaçuda, que se aproveitou em desfrute no côncavo e convexo da íntima zona de fricção. E pôs-se chapéu de vaca, com a Beladona ardente ficando fula da vida ao saber do porqueira em tapeação. Benza-Deus. Então a Beladona se aborreceu, correu fazer curso de esoterismo, leu Neruda, ouviu Cauby Peixoto, Pixinguinha, deu-se um tempo que tinha que aprender alguma lição com as cacetadas do verbo existir também. Beladona deu-se um desencargo de consciência, segurou muito bem o tchan, por assim dizer. Mas a vida é madrasta e Deus é pai. E a Beladona na vacância de uma paquera e algumas ficanças...se encafifou, onde já se viu, com um colega de trabalho na escola, professor de sua área. Só por Deus.

Quando se viu, estava multiplicando sonhos e explicitudes gozosas de prazeres e felicidade por atacado. Era o outro marido-vítima da Beladona. Como tudo, em tese, tem começo, meio e fim, a dádiva paixão também por mais pegajenta ou viajosa que seja, o professor foi para outra escola e, tiau. A Beladona azedou a polenta da vida, e, um dia, fui, deu um chega pra lá no frouxo do maridinho-mané, e, novamente, claro, deu Beladona nas pensões alimentícias – ganhava mais do que os machões varões - uma delas para o pai das herdeiras chiques e embonitadas.

Conversa vai, conversa vem, um dia a bendita Beladona estava com olhares maviosos e surgiu com cantada doce de aprendências em labutas. Beladona começou a sondar calendários, renúncias e pertencimentos. Foi nessa. Isso na segunda-feira. Depois, na terça-feira da semana, estranha coincidência, a Beladona com sininhos no coração. Pior foi na quarta-feira, dia de batente, e lá surgiu a Beladona parecendo uma penteadeira sonora de cigana. Ali teria os ex-patos-vítimas? Que nada. Na quinta-feira a Beladona lá estava pendurada em lustre, sem ter lustre. Será o impossível? Desconfiei, encafifado.

Pois não é que, na sexta-feira boêmia depois do dia de gandaia, a Beladona tava, de namorico, assanhada pro forfé? Onde há balaio há tampa, diz o ditado arigó. A Beladona tava jogando em todas as posições de ataque no time do amor? Mala e cuia. Estava saindo com os seis ex e alguns possíveis retornos de quase futuros. Cruzava, cabeceava pro gol e ainda defendia. Já pensou? Ai do amor! Pior: se descansava um sábado, falhava a encomenda de um contato, o ex era convertido crente sabatista de ocasião ou tava de pilequinho-ressaca brava, ela ainda dava uma paquerada por atacado, fogo na canjica das emoções atiçadas. Hormônio? Antes fosse. Antes fosse. Ninguém merece. Domingo ainda ia à feira do bairro sondar um português cheio de gíria, sotaque graúdo e sortido, e com um sapato 48 de tamanho maroto. Não estava encalhada e nem carecida mas, ia com a corda toda, em franca atitude de seduzir e de, nos seixos íntimos dar uma calibrada e pra isso tentando um novo serviço corpóreo de lubrificação corpo a corpo.

Depois, saquei o jogo dela: ela abria-se em leque do maquiavelismo interior, gostava do ex, da segunda-feira, seu primeiro amante, que a tinha inaugurado por dizer assim, um homem que a marcara bem, um cearense de olho azul meio brucutu, espingarda de grosso calibre, ainda que algo zarolho e desengonçado, para explicitar o mimo do vareio de amor. Era o número um na sua cotação marital. Mas fora isso o tipo musculoso era lerdo de raciocínio, néscio por demais, porqueira mesmo. Amontoado em casa, sem cair no batente, dar no couro financeiramente, prover o entojo do lar. Era só primeiro e referencial e pronto. Vá nessa.

O da terça-feira, dizia, era um japonês babaquara mas cheio da grana, o lazarento, filhinho de papai, olho de jabuticaba e cheirando a ouro e cocaína. Dose dupla. Era cotação três na sua pirâmide do amor. Tinha lá seu lado doador, sua ternura explícita, sua marca humanista de dar presentes e alegrar ambientes, e lhe dera carinhoso, mimos, balas importadas e muito amor ao estilo bem oriental.

O da quarta-feira era um safado de primeira. Cusarruim do dianho. Tarado, pervertido por assim dizer, e, pior: amante "caliente", babão, de deixar poesia no criado-mudo, fazer serenatas, improvisar guarânia brega no violão encardido. Declamava Vinicius de Moraes que até o poema parecia delezinho mesmo. Cantava Roberto Carlos melhor do que o Roberto Carlos. Tinha mais voz, tinha peito. As quartas eram nobres, portanto.

O da quinta-feira era um caipora de uma figa, um estrupício de marca maior. Bandido, mas ainda assim porqueira carente, ladrão em jogos de baralhos de clandestinos cassinos improvisados onde montava arapucas para pegar peixe grande. Lidava com traficantes, era amigo de antros de escorpiões de máfias e quadrilhas de contrabandistas informais que posavam de novos ricos neoliberais e traçavam engodos na globalização, até nas privatarias, as tais privatizações-roubos. Levava uma vida peregrina, caçando golpes para se enricar, só faltava mesmo ser das torcidas Mancha Verde ou da Independente Gay, melão em fio de navalha.

Só que o show da vida nas relações amorosas tem que continuar. No sábado de manhã quando algum dos agendados ex falhava, faltava com a palavra ou dava no pira pra uma pescaria ou biscate nova com seio de manga-sapatinho, a Beladona sentia a carruagem de abóbora na alma e pegava desconfio, baixa estima. Mas ainda era o que era, era a Beladona poderosa, o verbo amar era especial pra ela, razão de ser e de viver, não trocava nenhum dos seus tantos por qualquer Brad Pitt da vida ou muito menos Leonardo de Caprio. Onde já se viu?

O da sexta-feira era mais feio do que filhote de cruz-credo atrás de calipial, o último na escala da relação causa e efeito, o que até poderia ser descartável, mas a Beladona o adorava físico e espiritualmente pra custeio e refinamento. Era o seu bibebô sexual, seu inocente, puro e burro, o seu anãozinho de jardim, viçando assim ao seu lado maternal todo freudiano que muito a excitava sexualmente. Vá saber a loucura dos manejos assim.

Repito: no sábado a Beladona punha roupa no varal, a perereca na janela (lavou tá novo), e os abusados, claro, punham, depois dos usufrutos dos desfrutes a bengala pra descansar. Brinquei com ela, que ela deveria por a verdadeira jóia corpórea numa jaula para respirar ar puro e florais de ventos que solam Bach.

Mas a danada confirmou:

– No domingo ainda saio com o Joaquim Madeira, aquele dono de três barracas de pastel na feira. O homem não é fácil. Gamou e eu estou no desfrute.

O danado vai botar palmito na azeitona dela. Panela acesa é que faz freguesia boa?

-0-

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

PERGUNTAMENTOS - Poemas de Silas Correa Leite




Poemas de Silas Correa Leite


Poemas de Outono

P E R G U N T A M E N T O S

“Tenho de dar de comer ao Poema – Murilo Mendes

01)-Miseris Nobilis

volta e meia paira sobre mim
o medo da miséria e da fome
da minha infância humilde

então trabalho e estudo e escrevo
feito um condenado à vida
que só na loucura santa de sobreviver criando
encontra a sua espécie de cura

meus versos são pães dormindo
uma realidade substituta




02)-Teatro de Ocupação

Cansei de existir
Mas estudo, trabalho, luto para não
Repetir
A dose.
Morrer é passar de ano?

Luto para não me ferir
Mais do que me fere a existência
De ser
Um homem.
Viver é reparar dano?

Existo para inquirir
O nojo, o horror da vida, a cruz
Do medo
Da fome.
Escrever é baixar o pano?





03)-Violões

Invejo quem toca violão
Violão é o céu plangente
Na ponta dos dedos, na palma da mão
Como um corpo de mulher estridente
Em que você pratica a levitação
E gera música, harmonia, gente
Orquestrando a alma-nau da afinação.


04)-UTOPIA



detesto silêncio quando estou existindo

quando foi mesmo que existi?

detesto barulho quando estou escrevendo

que lugar me fujo no criar?

detesto existir quando escrevo poemas

que lugar me sou a fazer versos?

sou nada e tudo - qualquer parte

ESCREVENDO PARA FUGIR DE ME SER


















05)-Guerra & Paz




Trabalho numa biblioteca pública
De vez em quando os personagens
Dos clássicos vêm conversar comigo



É nessas horas que me enlivro.








06)-Labore



Tentei esquecer

Tudo o que a vida me fez sofrer

Mas como eu escreveria

Poesia


Sem o laboratório de me ser?














07)-Oito Quedas



hoje eu acordei

meio foz do iguaçu

ouvindo blues

desaguando poemas



O buraco das Sete Quedas é mais embaixo







08)-Laranja




botaram o ceguinho pra vender laranjas

no farol da Paulista com a Consolação



o pobre vendeu todas as frutazinhas

mas não viu nenhum tostão









09)-Furta-Cor



A

Solidão

Me

Protege






10)-Autoridade Civil




E SE A POLICIA TAMBÉM FOSSE PRESA UM DIA


POR DESACATO AO EXERCICIO DE CIDADANIA?




















11)-O Papagaio e a Pia

gota a gota a torneira pinga e chia

na pia da cozinha

o papagaio da casa vizinha

olha escuta aprende e espia


quando finalmente consertaram a pia

o papagaio já decora

e pia como uma pia marmórea

na sua entoação sonora


pior do que uma pia alada

seria uma torneira

pois fica chato na casa fechada

um papagaio imitando

uma gota vazada


12)-NEOLIBERALISMO (Cínico Estado Mínimo)

não há vagas

não há vagas

não há vagas

(Aceitamos Escravos)




13)-Mariposa




a mariposa suicida



na lâmpada apagada



espera amanhecer a noite




14)-Genuflexório






Minha mãe


Tirava lágrimas


Dos joelhos















15)-Xerox Quebrada




tenho tantas histórias pra contar


tenho tantas histórias pra contar


tenho tantas histórias pra contar





16)-IDIOTAS



Precisamos de idiotas

Para arredondar

A idéia da banalidade

Bipolar


E ainda há gente vulgar

Que acredita em genialidade


A morte é o atestado jugular

De nossa finita imbecilidade



Dá pra acreditar?




17)-Poema do Cego Pulando Amarelinha

O cego pulando amarelinha
Toma o anjo pela mão
Você só vê o gesto táctil do cego não
Vê jamais o anjo na sua condução
Em cada estágio de saltar sem pisar na linha.

O cego pulando amarelinha
Parece flutuar num balé
E sonda-o a rua de Itararé inteirinha
Perguntando o que nele enseja tanta fé
Céu e inferno; o cego parece que advinha...

O cego e a sua amarelinha
Parece um milagre até
Toma-o pela mão o anjo; o cego se aninha
E pula e salta e vence e acerta o pé
Talvez porque céu ou inferno só dentro da gente é.





18)-Pirilâmpado

“Ninguém pode pensar, sentir ou agir
Senão a partir da própria alienação...”
R. D. Laing

Se quero sobreviver preciso esquecer que meu corpo é uma carcaça.
Uso as palavras para recompor minha vida exangue.
Tento compreender o absurdo da existencialização.
Prezo a morte e leio escombros na angústia-vívere.
Tenho em mim a decadência-preço de Existir.
Não fui aparelhado espiritualmente para suportar a vida.
Minha infância pobre é o mundo que trago às costas como uma lesma com carcova.
Sou um renunciante à vida que respira a tristeza no caos.
Amo os silêncios porque deles tiro filés de santas palavras.
Caibo em despertencimentos, desabandonos e desespelhos com a consciência saturada.
Minha palavra é a minha voz como o estertor de um vagido.
Existir dói e faço doer os engenhos e açudes das palavras.
Uso as esporas das palavras em verso e prosa para refazer a vida que me deram como uma sentença-castigo.
Se eu escrever ansiedades perdoem o inexato corte de pelica da dor em mim lavrada.
Não tenho fórmulas para escapar ileso e não estou impune.
Sou um bebedor e comedor de verbos feito um Pirilâmpado.
Dou ciência de mim aos efêmeros insensíveis como potes de vísceras.
Não me leiam se não querem se assustar de serem a si mesmos revelados como carcaças em espelhos turvos.
Sou por acaso aqui e ali uma espécie de rebrilux. Os gemidos de noiteadeiro falam por mim, me descrevem.
Palavras me são remédios. Correm no meu sangue. Regurgito.
Como se adubos de palavras em ordinárias bateias de granizo.
Sou inventariante de angústias humanas, escondo-me em bibliotecas
E bebo de lanhos de meu próprio sangue letral
Envenenando-me da dura e triste carcaça Sobrevivencial.












19)-Tintas (Água, Sal e Muro)



Um índio pode deixar suas terras muito além das montanhas e florestas
Passar por divisas, armadilhas - entrar em grandes metrópoles urbanas tristes
Mas, ainda dentro de um shopping, no meio de uma praça pública ou túnel
Um índio será sempre um índio

(Tenho sangue índio, negro e judeu em mim)

Um negro pode ter deixado a sua aldeia numa distante savana da África-Mãe
Passar por moendas, engenhos, bandas de blues ou resistências espirituais
Mas, ainda dentro de uma catedral, no meio de anjonautas ou solitário
Um negro será sempre um negro

(Tenho sangue índio, negro e judeu em mim)

Um judeu pode deixar sua sinagoga, suas tribos, seu cântico do talmude
Passar por diásporas, derramas, cálices, trevas, êxodos ou inquisições
Mas, ainda que esteja cordeiro tosquiado no vale da sombra da morte
Um judeu será sempre um judeu

(Tenho sangue índio, negro e judeu em mim)

............................................................................

Sou a mistura de horizontes, fermentos; salmos e renascimentos alados
Sou água, sal, muro das lamentações, ancouradouros e flores de jasmim
O que mais sou numa aquarela de mistura quando escrevo todas as tintas de mim?
Sou a dor do índio vitimado
Sou a cor do negro escravizado
Sou o horror do judeu exilado
Sou lágrima, arado, pensagem, querubim
Sou todos os seres humanos numa palheta misturado
Sou a raça humana - a espécie que erra
Sou o bom cabrito que no poetar berra
E sou, ainda, a minha própria terra
Eu mesmo um Brasil indecifrável lá dentro de mim








20-My Way



My Way


Um dia você acorda e olha pra trás
E diz: eu não era nada.
E vê toda vida que fez do seu jeito
E pergunta: terá valido a pena?
Você acha que venceu na vida
Mas sabe: o que restou de você?
Talvez muito pouco ou quase nada
Daquilo: uma criança pura.

Um dia você cai em si e teme
O resultado: o que fizeram de você
A luta a dor, as amarguras e
Seqüelas: terá sido uma vitória?
Dentro do seu coração os sonhos
E as escuridões: são os poemas
Que você escreve porque tem medo
De se matar: morrer depois de tudo?
..............................................................
Um dia você não quer olhar pra trás
E nem pra você: foge para a poesia.

(Na escrita há um tempo irreal
Uma ilhota íntima: você em você!)

-0-

Silas Correa Leite
Santa Itararé das Letras
E-mail: poesilas@terra.com.br
www.portas-lapsos.zip.net