segunda-feira, 27 de abril de 2009

Crônica O HOMEM QUE VIROU CERVEJA





O Homem Que Virou Cerveja


Bebo porque é líquido.
Se fosse sólido comê-lo-ia


Jânio Quadros


Emanuel Calixtrato Piazotti Assad era o maior bebedor de cervejas da região de Itararé. Dizia que bebia para ser feliz, para aceitar as coisas ruins da vidinha merreca que levava, e assim poder conviver em paz com as pessoinhas como elas eram. Bebia muito pra tornar a vida mais interessante. E, citando Jânio Quadros, brincava dizendo que bebia porque era líquido, se fosse sólido “comê-lo-ia”...
Com ele beber cervejas era sagrado, e uma condição psicossomática naturalmente assumida, que invocava um ritual todo próprio que montara de porre direto, seguido, de domingo a domingo. E o fazia no lugar do café-com-leite com broa de milho de cada manhã, no lugar da água potável pra sapecar a sede corpórea, em vez do suco de framboesa ou limonada com limão-rosa da tarde, antes da marmitona do almoço frugal, antes da janta com creme de espargos e pedaços de frango atropelado, antes de dormir enormemente entupido, e, pior, quando o médico já descorçoado, receitava tufos de remédios pra rinite ou mordidas de abelhas (pois que ele era pegajoso de açúcares esplendentes), ele os tomava sempre com cerveja light ou sem álcool. Era impossível.
Encostava o umbigo peleguento no Bar do Tepa, ali na Rua 24 de Outubro, centro velho de Itararé com seus paralelepípedos feito cacau quebrado, e tomava todas e mais algumas, antes de subir trombudo o sentido da casa de meia-água de tabuinhas de pinho no alto da Vila Osório, bem pertico do popularesco e concorrido siriri das putas da cidade, nos idos de antigamente, em que se escrevia farmácia ainda com peagá.
Sua lenda pessoal, todo mundo sabia. Era simplesmente cair peladão como adão bêbado numa piscina de cerveja, de canudinho e tudo, e só acabasse o forfé inteiro quando se entupisse dela toda. Seu sonho impossível era ser um provador de cerveja numa tal República Rural-Etílica da Bavária. Sabia piadas sobre cervejas, adorava a loira gelada e, falando sério, para ele tudo era cerveja, até os preços nas biscates que fazia de eletricista, encanador, pedreiro, azulejista, trocador de parafusos ou mesmo em temporadas de zeladoria de clubes em forfés de momo, quando era, claro, tudo uma bolsa de valores na base de cotação-cerveja.
Prum batente passageiro de final de semana, trocar rosca numa torneira, puxar fiação de 220 wolts, consertar pneu de bicicleta rueira, trocar pneu de jipe chique de perua com mini-saia curtinha que dava pra ver as amídalas por baixo, era baratinho: saía pelo preço de duas cervas apenas. Mais umas lambujas.
Não tinha lá muito fanatismo por uma ou outra marca, de Brahma a Antarctica, mas gostava muito da Skol, e sempre desconfiava das marcas novas, até que, por ocasião de algum forfé maleixo, se empanturrava de uma dessas marcas nascentes e passava a constar no seu rol de apreciador por atacado a noviça e deliciosa cervejinha da hora, até porque, falando sério, a bem da verdade, a primeira fazia tchum, a segunda dúzia mais ou menos essa onomatopéia no gargalo, depois, tudo era a mesma coisa, amarga ou espumosa, quente ou gélida. Diziam, os fofoqueiros oficiais da central de boatos de Itararé, que se ele já tivesse se empanturrado como uma paca obesa, podiam pedir pruma grávida mijar num litro, gelar direitinho, que ele todo trancham tomava babando e ainda arrotava espuma no beiço curtido. Já pensou?
Emanuel era um boêmio famoso da fauna notívaga da Estância Boêmia de Itararé, Santa Itararé das Artes, que via a vida de dentro de uma garrafa de cerveja, sob a ótica escapista desse enfoque. Tudo no exterior do ser de si, era uma baita cervejaria cósmica, os seres tanto podiam ser apanhadores dos campos de centeios, quando não fermentos saradinhos, topetudas saúvas bípedes, tonéis de carvalhos com torneirinhas e tudo, polacos barris de chope, curtidouros ambulantes, alambiques com alpargatas, um bucho de maltes, lúpulos e levedos, serpentinas com orelhas e ia por aí a prosopopéia.
Para uns ele era um tremendo pudim de cachaça, para outros era um cidadão-contribuinte bonachão mas viciado nas biritas e nos percursos habituais de trecheiros etílicos que faziam a via sacra e notória da pinguçaiada da cidade.
Alguns piás de rua, fuzarqueiros, berebentos e com amarelão, procuradores de sarnas públicas pra atiçarem pedras de dezelos íntimos e banzés vernaculares, assopravam que, se riscassem um palito de fósforo no Emanuel ele virava tocha humana em segundos, tal o teor de combustão nas tripas e que davam explicitamente na epiderme.
Churrasco era com cerveja espumosa, claro. Sem tirar nem pôr. Ia levar a mulher crente no culto da Assembléia de Deus ali na rua Prudente de Morais, e ficava no barzinho da esquina do Carlinhos Pingüim sapecando algumas, filando petiscos, contando palha, azarando camaradas de vício. Se o filho carecia cuidar de uma cárie no dente de leite, deixava o piá no dr. Alfredinho Dentista e lá ia ao Biribas Blues Bar tomar a saideira que era, a bem da verdade, sempre a penúltima, nunca a derradeira.
Morria algum parente? Ché. Corria dar uma olhada no cadáver pardo, fazia aprumo de dezelo íntimo, depois se pinchava todo de tromba pro Bar do Tunico Bittencourt na esquina do morgue e lá chorava suas pitangas, regado, claro, a uma espumosa preta de colarinho curto para assim até dar sentido simbólico e de metáfora à sofrência.
Bebeu tanto, e todos os dias, que até teve crises de delírios. Saquem essa. Quando, mal serviam a cervejinha da hora, e encostava a orelha de dumbo perto do copo, logo, bem entojado, variando purgações, dizia ouvir aplausos de dentro do copo recém servido para a sua sabedoria de bebemorar muito bem e ser fanático por esse néctar dos anjos. Vejam só. O céu por testemunha.
Fazia apostas. Quem bebia mais. O Fernando Milcores desacorçoou. O Jorge Chueri não foi na lábia doce dele. O Tanaka Bailarino, o Badu Contieri tipógrafo, o Bastião Querosene boêmio, o Pedro Ganxuma bóia-fria, o Tilico Boaventura cafetão e nem mesmo o Barão do Caiçara todos juntos, não eram páreos pra ele. Dava gosto vê-lo entornar uma garrafa de casco escuro num golpe só. Ganhava todas. Vinha gente de fora da Estância Boêmia de Itararé tentar levar vantagem com ele, mas ele, tinha feita que, numa empreita etílica dessas, enquanto bebia as três dúzias de uma vez só sem pestanejar, batendo seu próprio recorde já folclórico, ia mijando-se todo, bebendo e vazando, entrada e saída no mesmo duto corpóreo, feito uma esponja etílica.
Até papeava que, se a cerveja fosse paga com o desconto dos mijos, seria muito mais barato o preço. Pensava em reclamar com o Procon a respeito essa questão de direito de beberrão, boêmio sarado que era, se imaginando herói de uma ONG nesse propósito de defender o líquido inexato. Pensava até em escrever pro Presidente Lula esse reclamo gaiato.
Os médicos diziam que ele tinha bucho de três pessoas para tanto receptáculo no seu pote de vísceras, mais que o corpo era um só, a cabeça uma só, o pulmão um só, o coração idem, a biles uma só. Onde já se viu? Mas ele era assim, fazer o quê?. Com isso, com o envelope redondo do tempo indo e vindo nas circulares das bebemorações por atacado, o estrupício ganhou íngua em tudo quando era lugar, até nas idéias, diziam alguns sarristas. Tinha caroços em tudo quanto era parte do corpo. Endócrinos avaliavam, e davam com um ou outro nódulo benigno qualquer, encerotada de levedo velho, lúpulo antigo, malte sarado no nodal cíclico.
Diziam que tinha a língua dourado de tanto malte, levedo e lúpulo passando por ali. Tinha calos até nas unhas amarelas parecendo chifres amelados do dianho. Os cabelos, acredite se quiser, amarelaram com o tempo. O céu por testemunha. Diziam, os mentirosos e gozadores, inventores do inexistente, que ele urinava rótulos amarelos das cervejas apreciadas. Mas aí já é invencionice de gente fofoqueira da central de boatos da cidade. Mentira tem limite, né?
Mistura de italiano com árabe, pai oriundo da Sicília e mãe da roça de tâmaras e hortelanzeiras do Líbano, ele tinha pique, saúde, jeito e, bem forte, começou ainda mais a encorpar nova estética quando deu-se por beberrão, viciado, com o seu fígado inchado reclamando, pois que começara a fazer mal pras bebidas. Mas nem cirrose tinha, o lazarento e caipora. Mal-e-mal, vez em quando, uma ressaca de vomitar serenatas inteiras em jatos dourados. Mas depois do desperdício, dizia ele, era só engatar numa outra bebedeira e o corpão todo se aprumava num eixo movido a álcool. Era um alambique ambulante.
Empresas de cervejas da região sulista toda, quando iam lançar novas marcas caseiras com buquês novos, chamavam o Emanuel pra dar seu gosto de referencial, avaliar o paladar do deguste, no desfrute que filmavam alvissareiros como propaganda de que ele sabia mesmo escolher e era mesmo entendedor da marca e do consumo salutar dela.
Até que começou a ficar gordão e amarelo. Enorme como uma anta obesa, até o beiço mole (conservado em cervas) da mandíbula superior vindo pra fora, feito bico somatizado pra captar melhor a espumosa geladinha. Pior foi a cor. Era primeiro de um pardo-biscate, depois um verde maleixo, em seguida marrom-estrume e finalmente a tez amarelou. Quarentão e dourado. De noite, aos tropeções, ganhando a periferia de sua casa, parecia um filhote de cruz-credo, até na estética disforme espelhando a luz da lua mas em cor amelada brilhante.
Teve um filho só, pois se casou com a Mariquinha Lemos, e, quando cobravam porque só tinha um piá de nome Porter (marca de cerveja sulina), ele dizia que era para não gastar zona de fricção a toa, pois que o enorme bucho era o seu laboratório de enzimas componentes das cervas queridas, sua razão de ser e de viver. A cerveja era o néctar dos deuses, dizia. Dizia-se, todo pimpão, ser uma cerveja ambulante, bípede, comedora de carniça, fornicadora e sedentária.
Sonhava ser, numa outra vida, se houvesse outro boteco no céu, uma cervejona e tanto. Encorpada e de marca. Cara e famosa. Alemã, de preferência. Quando morresse, depois das cinzas etílicas, claro, queria ser enterrado numa garrafa de cerveja de marca maior, casco escuro, claro. Por ora ia levando a vidinha, mais rolando do que andando, tanto que estava encervejado em tudo, inclusive no psicossomático. Virou assim uma espécie refratária mal ajambrada de uma garrafa de cerveja ambulante, e até usava de tampinha um boné bem parecido.
Eram 90 quilos-litros de cerveja embalados no seu corpo-casco pra itinerante percurso orbital, todo santo dia, entre a casa e os bares, entre os afazeres e os bares.
O pior de tudo, no entanto, reclama ele, arrotando fermentação numa hérnia epigástrica já esticando o bucho, é quando, saindo de sua humilde casa ali Vila Osório, garrando os afazeres de biscateiro no centro da cidade, os piás, jaguaras de gozadores, logo botam a boca pra fora, feito estrupícios, entre as encardidas cortininhas de florezinhas variadas das janelas das casinhas humildes e periféricas, e gritam, aloprados gritam em alto e bom tom:
-Dééééésce REDONDO!


***

Silas Correa Leite –
www.portas-lapsos.zip.net

Nenhum comentário:

Postar um comentário